terça-feira, 24 de outubro de 2006

Por nada de mais...

Bem assim, a esmo, a agulha costura notas uma à outra, tecendo harmonias estranhas. Em pontos de uma costura invertida, bizarra, faz surgir do que era nada, ou só ranhuras, um terrível monstro e um coro de anjos na sala escura. E gira, e gira, e gira... no ar o som se aproxima, em círculos concêntricos vem cada vez mais perto, e sinto medo. Sinto muito medo. Antes que chegue eu fujo, mas pertence a ela (sem nome, aguda) esta sala escura, daqui não há fuga. Noutro canto lá estamos, ela e eu de joelhos, quero ser salvo, redenção, a saída, transcender. E ela sente, a agulha, o Sacrifício. Braços abertos, num turbilhão de agudos estridentes ela me fura, e sangro e morro, em tempo. O som (como o sol) é o mesmo, de modo relativo, mas é outro. Ela, delicada, desenha no meu corpo seus símbolos mágicos, como a marcar com fogo. O traço, intenso, se move, suave. Céu e inferno no meu corpo morto, ela desenha amor e ódio, água, terra e fogo, enquanto flutuo. Me prepara para renascer, divino talvez, santo ou o que for (até eu mesmo).
Mas ainda é fim, e agora silêncio. Aguardar a volta... que seja como eu quero, ou ao menos que me seja leve a terra. Abrir os olhos ainda não, mas já sei que a sala agora é o mesmo de sempre, concreto e chão. Já sei, como talvez não quisesse, que acabou. E agora quem sou? Quem há de ler os símbolos mágicos? A agulha agora já não é qualquer coisa mais que agulha, não se move senão sobre o disco, por entre as ranhuras, e não tem nada para entender.
Vês uma parede?
Uma tela colorida?
Vês um mosquito? Zumbido?
Um sacerdote em êxtase dançando sob o sol?
Um livro aberto, sagrado?
Um copo sujo?
O sofrimento infinito de milhares de milhões de almas que passaram por aqui?
E das que não passaram?
Uma caneta?
Incenso?
Violência, amor, ódio, compaixão, ciúme, cobiça, dor e prazer?
O inconsciente?
Formosíssima Dulcinéia a acenar com seu lenço?
A verdade? A outra?
Música?
O universo existindo e não-existindo a todo tempo, mahavisnu?
O mundo subatômico?
O que tem fome?
Complexos? Arquétipos?
Fogo?
Cachaça?
O eterno retorno?
Narciso?
O cheiro da chuva?
O Outro no espelho?
Maconha?
Pés de barro?
Restos de uma civilização?
Surrealismo?
Soma?
Uma sonata composta em noite fria?
O amor?
Amigos?
O capital?
Ser?
Teus dedos?
Zeitgeist?
Pós-modernismo?
Esse disco raro?
Vês?
A vida inteira: intensidade em palavras?


Pois é... maya.

Pensando bem, meu amigo...

...pra dizer nada, uma vez já basta. O resto é silêncio.

***