terça-feira, 18 de novembro de 2008

Excerto de um dia de inverno

Naquela noite eu era um sozinho em meio ao incrível ruído de todos os sons da eternidade. Qual motivo de fundo, a mórbida pulsação do concreto se pronunciava a todo instante nos meus oito ouvidos, em dueto ora com o vento ora com a terra. As máquinas cantavam sempre perto naquela noite, tramavam melodias como imitassem pássaros de metal, e nenhuma voz silenciou, não havia qualquer ponto a indicar final. A multidão que éramos unissoava como mar profundo; ondas de escuridão à minha volta me faziam fundir ao negrume, eu era como parte dalgum monstro terrível. Me confortava unicamente saber que algo ainda era somente eu naquilo pouco que não era som, de resto, tudo éramos escuridão.
Por instinto de sobreviver, eu insistia em diferir, pois qualquer regularidade em ser eu, me fazia vulnerável a desfazer-me nas repetições periódicas do mundo às voltas; soasse eu alguma nota, a mais breve que fosse, e se me tomava de todo o terror de dissolver-me em harmonia com o universo.
A imanência era a realidade mais real: uma pequeníssima ponte de esfacelar-me era tudo o que a a separava de o que eu era, cruzasse esta ponte e já não havia voltar, havia só jamais ter ido. Quão atraente de tão longe outrora me pôde parecer a morte, o desfazer-se em infinitos e possíveis, mas agora, ainda que ventasse em mim doloroso o ruído absoluto de todas as coisas, não havia qualquer beleza na bocarra da morte, terrível e definitiva entranha. Sentindo medo, eu ainda assim não me podia permitir soar constante. Meu caminho era de tremer meus medos em assimetrias através da noite, correndo em busca do sol, a ponta oposta, que dali distava ainda ao menos uma eternidade. Andar não levava a lugar algum. Dormir, talvez morrer, compreendi ser a única forma de cruzar eternos, e me preparei então para o possível deixar de ser. Era terrível e necessário ter de suportar a minha própria pulsação, e sustentar assim o risco de me desfazer na harmonia inorgânica (não se dorme sem manifestar alguma constância, e assim se diz dos que dormem que ressoam).
Dormi, pois, talvez a maior das bravuras de todas minhas vidas, dormi em posição de quem morre, cerrei os olhos em pulsar constante e abandonei-me à sorte, derivei em busca do sol, e felizmente ele veio encher meus olhos de vida e realidades já não tão reais.
Jamais me foram tão agradáveis as ilusões de luz e sombra, o prazer dos vivos jorrava em cada ponto que discernia com olhos, e os sons, graças à sorte, tão abafados e imperfeitos como sempre me vinham a exalar um perfume de eu ser humano... que belo é ver borrado novamente, abençoada a queda, e muitos vivas à ignorância. Felizes são os de estreita compreensão - para o meio dos quais eu voltei - pois a nós é dado sorver a alegria de viver.

segunda-feira, 29 de setembro de 2008

Atma

O que resta, quando cessa? Quando cessa o que embesta, que é que fica? Quando não fujo, esvazio, o que fica além desse frio? Quem existo quando de inteiro eu me desvisto? Quando despido do hábito de ser mesmo, pele outra alguma ainda resta, estar algum sutil? Se como a vida eu corro, rio, aonde é que vou? Que é que serei, afinal, lá onde já não sei mas ainda sou?

segunda-feira, 30 de junho de 2008

Não é fome que sinto, nem tampouco é um sentir de quem esteja pleno ou saciado. É sim uma náusea que me desperta a presença do vazio de mim. Náusea ansiosa ante isto que sou, que me sinto. É a fala da grosseira víscera profana, marca da minha única imperfeita natureza mundana: nauseio pois sou humano, nauseio frente ao incompreensível que ainda me é o sagrado de ser vazio.

Profano ainda, sacio-me a ansiosa víscera com um qualquer fruto caído que, humilde como rola no chão, é e sempre será mais sagrado que qualquer de minhas crípticas complexidades, pois sem consciência, compreende em si a vacuidade de tudo o que é.

Complementos à sombra do texto

Falo da sobra e da sombra, aquilo que escapa de tudo o que se diz, escreve, e sente, e de como encontrar isto para trazer à luz o que seja para mim a atitude de contemplar, preferida minha diante das coisas da vida.

Pressuponho primeiro que a nenhum e a todos é possível que se conheça a realidade, sendo que um ou outro caso se aplica conforme seja minha ou de outro a realidade de que falo.
Posso dizer então que, ao acompanhar um texto, convém que se não atenha tão só às letras e palavras ou frases ali ditas, senão que também à sombra da letra escrita, à ressonância da fala, às palavras e frases que não são ditas mas que poderiam, que bem podem estar escondidas entremeando as brechas do texto.
Pois então ao estar em presença de flores, é bom que se preserve o assombro; que assim não seja a atenção tão somente voltada à beleza e ao perfume que se pronunciam na presença suave, mas que esteja também ali naquela auto-evidente leveza a possibilidade da rudeza e violência das flores, e tudo o mais.

Na vivência dos fenômenos então, além do que está posto, também há que se buscar o que haja de indizível ou insondável acerca do que sejam as coisas da vida, flores ou qualquer, pois é justamente no mistério da vivência que a experiência se faz entusiasmante.